Compensação de créditos de natureza tributária no curso do processo judicial

A compensação de créditos de natureza tributária indevidamente recolhidos ou recolhidos a maior em decorrência de decisões judiciais sempre foi um tema tortuoso no Brasil.
A situação passa de um cenário complexo, nebuloso e burocrático até o início dos anos 1990, para um regime completamente descontrolado no final daquela década que culminou com a introdução do artigo 170-A no CTN.
Ocorre que, mais de 20 anos após sua instituição, já se mostra oportuna uma nova análise do alcance do dispositivo, em respeito aos princípios orientadores da Constituição de 1988 e da atual jurisprudência das Cortes Superiores.
Breves considerações históricas no âmbito fiscal, a década de 1990 ficou marcada pelo início dos esforços de modernização e informatização dos sistemas de prestação de informações fiscais e por uma verdadeira enxurrada de ações judiciais que assolaram o Poder Judiciário com o objetivo de afastar a cobrança de tributos.
Em razão das profundas alterações no sistema constitucional tributário decorrentes da entrada em vigor da Carta Magna de 1988, praticamente todos os tributos sofriam algum tipo de questionamento junto ao Poder Judiciário.
Essa tendência de questionamento judicial dos tributos ganhou força com a declaração de inconstitucionalidade da contribuição do “Pro Labore” (Adi 1.102/DF) e do “Finsocial” (RE 150.764-1/PE) pelo Supremo Tribunal Federal.
Essa judicialização em massa, somada à falta de posicionamento do STF sobre pontos sensíveis do sistema tributário, levaram a uma insegurança jurídica e fiscal sem precedentes. Começaram a ser concedidas liminares suspendendo a exigibilidade dos mais variados tributos e pior, autorizando a imediata compensação dos valores “indevidamente” recolhidos.
A situação saiu do controle e começou a afetar a economia, pois empresas que obtinham essas liminares podiam baixar seus preços.
Nesta época foi cunhado o termo até hoje utilizado nos meios jurídicos da chamada “indústria das liminares”, assim definida por Hugo de Brito Machado:
“expressão de sentido pejorativo com a qual se refere às medidas liminares deferidas pelo Judiciário para suspender a exigibilidade dos tributos questionados pelos contribuintes” 1.
Vale lembrar que naquele momento não havia jurisprudência sedimentada no âmbito dos Tribunais Superiores sobre a maioria dos novos temas.
Finalmente, em 2001 foi introduzido o artigo 170- A no Código Tributário Nacional com a finalidade de impedir a compensação de créditos judicializados antes do trânsito em julgado da respectiva ação.
“Art. 170-A. É vedada a compensação mediante o aproveitamento de tributo, objeto de contestação judicial pelo sujeito passivo, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial.”
Da necessidade de revisão do entendimento sobre o alcance do disposto no artigo 170-A do CTN Para enfrentar o tema proposto diante de sua rigidez terminológica temos que levar em consideração que o direito, especialmente a interpretação da legislação, deve evoluir para acompanhar as mudanças sociais, conforme leciona Adilson Abreu Dallari:
“Toda norma legal, inclusive constitucional, decorre de um ambiente político, social e econômico vigente no momento de sua edição. Mas esse ambiente muda com o decorrer do tempo, exigindo do intérprete e aplicador da lei um esforço de adaptação, para que possa dar a correta solução aos problemas emergentes. É certo, portanto, que a melhor interpretação da lei (entre as várias possíveis) vai variar ao longo do tempo de sua vigência. Uma interpretação incontestavelmente correta adotada em um momento do passado, pode tornar-se inaceitável em ocasião posterior, pois obviamente, não faz sentido dar-se a mesma solução para um problema que se tornou diferente, em razão de alterações no plano da realidade fática” 2.
Por outro lado, vale lembrar que, por mais simples que seja o conteúdo de um dispositivo legal, não se pode interpretar seu alcance de forma isolada.
Partindo-se destas premissas, o primeiro fator a ser levado em consideração nesta revisão do alcance do disposto no artigo 170-A do CTN é que a forma de se efetivar uma compensação, especialmente os sistemas informatizados de prestação de informações contábeis e os mecanismos de fiscalização, mudaram completamente nos últimos 20 anos.
A interminável burocracia em papel que ao mesmo tempo dificultava a vida dos contribuintes e tornava quase impossível a fiscalização em tempo real do pagamento/compensação de tributos, foi substituída por sistemas informatizados que permitem fiscalizar remotamente as empresas.
Além disso, a interpretação sobre os direitos fundamentais do contribuinte também avançou muito. Inúmeras são as decisões do STF reconhecendo e ampliando direitos fundamentais do cidadão e outorgando aos princípios e imunidades tributárias o status de cláusulas pétreas.
Por óbvio, não se pretende afirmar que exista um direito fundamental de o contribuinte compensar seu crédito quando e como quiser, todavia, a forma de exercício deste direito prevista na lei deve ser razoável, acessível e em sintonia com os princípios constitucionais tributários.
Como já afirmava Geraldo Ataliba “Efetivamente, nenhuma norma jurídica paira avulsa, como que no ar. Nenhum mandamento jurídico existe em si, como que vagando no espaço, sem escoro ou apoio Não há comando isolado ou ordem avulsa” 3.
Neste ponto, a aplicação literal e isolada do disposto no artigo 170-A do CTN já não encontra mais respaldo. Apontaremos ao menos três situações em que a aplicação literal do dispositivo deve ser revista:
a) Tributos declarados inconstitucionais ou ilegais pelas Cortes Superiores no curso da demanda.
Não existe lógica em se impedir aquele que arcou com tributo declarado inconstitucional ou ilegal de forma definitiva de utilizar este crédito.
Viola diretamente o princípio da razoabilidade a existência de um dispositivo legal que impeça o contribuinte de usufruir de um crédito declarado inconstitucional pelo Plenário do STF porque a sua ação, idêntica no mérito à julgada, está suspensa por questões burocráticas.
Note-se que a aplicação do princípio da razoabilidade como forma de conter os excessos do Estado não é novidade e já se encontra sedimentada no âmbito do E. Supremo Tribunal Federal.
“– A exigência de razoabilidade — que visa a inibir e a neutralizar eventuais abusos do Poder Público, notadamente no desempenho de suas funções normativas — atua, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais” 4.
Também não se pode ignorar as consequências do disposto no artigo 927 do CPC:
“Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (…)”
Se a decisão que reconhece a ilegalidade ou inconstitucionalidade de um tributo tem efeito vinculante, como pode não afetar o disposto no artigo 170-A do CTN?
A declaração definitiva de inconstitucionalidade ou ilegalidade de determinado dispositivo legal ou constitucional impõe a relativização do disposto no artigo 170-A do CTN.
Nem se diga que eventual liberação imediata do direito de compensação poderia trazer dificuldade de caixa para o governo porque tal situação não pode ser utilizada como subterfúgio para retenção indevida do direito de crédito do contribuinte. Em voto memorável, outro não foi o entendimento do ilustre ministro Marco Aurélio do E. STF:
“(…). Não me canso de ressaltar, principalmente neste embate Estado e cidadão, Estado e contribuinte, que a Carta Política da República é o elemento definidor do almejado equilíbrio, freando a fúria fiscal do Estado. Dificuldades de caixas não podem ser potencializadas a ponto de olvidarem-se os parâmetros constitucionais” 5.
Se o tributo foi declarado inconstitucional e a decisão tem efeito vinculante, não existe suporte legal valido para justificar o impedimento para o contribuinte recuperar os valores recolhidos.
Mudança de interpretação da legislação tributária pelos órgãos fiscais que impacte diretamente o objeto da ação muito comum, no âmbito tributário, é a mudança de posicionamento do Fisco sobre determinadas questões, seja por decisões administrativa ou judiciais, seja pela própria evolução dos institutos.
Por vezes a mudança de entendimento atinge diretamente contribuintes com ações judiciais em andamento sobre o tema.
Por incrível que pareça, mesmo com o “credor” acolhendo a pretensão do contribuinte e permitindo a tomada de determinado crédito, se ele for autor de ação questionado a interpretação antiga, ficará impedido de tomar o crédito.
Nem se diga que será somente o caso de se desistir da ação que ele poderá usufruir do crédito, porquanto tal fato depende de outras questões como sucumbência, prescrição etc.
O disposto no artigo 170-A do CTN simplesmente não consegue dar um tratamento lógico e legal a este tipo de situação.
Existência de Recursos pendentes de julgamento alheios ao mérito da demanda Embora haja muita discussão na doutrina, com a entrada em vigor do Novo CPC, o Fisco, com base no disposto no artigo 975 do CPC e na Súmula 401 do C. STJ, fixou o entendimento de que somente é possível a compensação de um crédito tributário após o julgamento do último recurso do processo:
“CPC Art. 975. O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo.
Súmula 401 O prazo decadencial da ação rescisória só se inicia quando não for cabível qualquer recurso do último pronunciamento judicial.”
Não é objeto do presente artigo a discussão sobre o acolhimento ou não da teoria do trânsito em julgado parcial da sentença (capítulos da sentença) ou da unicidade da sentença pelo novo CPC, mas sim fixar a ideia de que independentemente da corrente vencedora, o fato é que o disposto no artigo 170-A do CTN não pode impedir a compensação dos valores quando não existe mais recurso de mérito em relação a parte do processo.
Vamos exemplificar três situações:
a) Determinada empresa impetra Mandado de Segurança visando afastar a incidência de contribuições previdenciárias sobre o pagamento do terço de férias, aviso prévio indenizado e o salário maternidade aos seus colaboradores e compensar os valores indevidamente recolhidos, a ação é julgada procedente em primeira instância e a decisão é confirmada pelo Tribunal, a PGFN ingressa com Recurso apenas em relação ao terço de férias;
b) Duas empresas ingressam com uma ação ordinária em litisconsórcio ativo para questionar as mesmas rubricas descritas acima, a ação é julgada procedente em primeira instância e a decisão é confirmada pelo Tribunal, a PGFN ingressa com Recurso apenas em relação à condenação ao pagamento dos honorários advocatícios; e
c) Três empresas ingressam com uma ação ordinária em litisconsórcio ativo para questionar as mesmas rubricas descritas acima, a ação é julgada procedente em primeira instância apenas em relação a duas e a decisão é confirmada pelo Tribunal, apenas a terceira empresa ingressa com Recurso Especial junto ao STJ;
Em todos os casos, se aplicado literalmente o disposto no artigo 170-A do CTN, a compensação não seria possível porque inexistiria o trânsito em julgado.
Importante registrar que a compensação de tributos indevidamente recolhidos, em âmbito federal, em decorrência de ação judicial, depende de habilitação prévia do crédito na forma constante da IN RFB nº 2.055/2021:
“Art. 102. Na hipótese de crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado, a declaração de compensação será recepcionada pela RFB somente depois de prévia habilitação do crédito pela Delegacia da Receita Federal do Brasil (DRF) ou pela Delegacia Especializada da RFB com jurisdição sobre o domicílio tributário do sujeito passivo.
I – o formulário Pedido de Habilitação de Crédito Decorrente de Decisão Judicial Transitada em Julgado, constante do Anexo V;
II – certidão de inteiro teor do processo, expedida pela Justiça Federal; (…)”
Sem a certidão de trânsito em julgado, o contribuinte não pode habilitar seu crédito.
Felizmente, algumas decisões judiciais já permitem superar a exigência:
“Trata-se de petição na qual a parte autora requer a declaração do trânsito em julgado parcial da lide, no que tange ao afastamento da incidência de contribuição previdenciária sobre valores pagos a empregado a título de auxílio-acidente, aviso prévio indenizado, auxílio creche, auxílio transporte, auxílio alimentação, auxílio-educação, seguro de vida e plano de saúde em grupo, observada a prescrição decenal, alegando que não houve recurso da Fazenda Nacional quanto aos referidos pontos. (…) Isto posto, determino que seja certificado o trânsito em julgado parcial da lide, no que concerne à inexigibilidade de recolhimento de contribuição previdenciária sobre o aviso prévio indenizado, o auxílio creche, o auxílio transporte, o auxílio alimentação, o auxílio-educação, o seguro de vida e o plano de saúde em grupo, observada a prescrição quinquenal” 6.
Por mais que já se vejam decisões afastando a aplicação do disposto no artigo 170-A do CTN, quando os recursos existentes versem sobre questões periféricas, desvinculadas do mérito da ação, a jurisprudência mantém o entendimento de que, se não há o trânsito em julgado integral, não pode haver compensação.
Conclusão: Com base nas premissas expostas no presente artigo, podemos concluir que já é tempo do alcance do disposto no artigo 170-A do CTN ser revisto pelos Tribunais Superiores. A evolução dos mecanismos contábeis e de controle fiscal, somada a uma interpretação mais extensiva dos direitos do contribuinte pelos Tribunais, impõem que, em algumas situações, seja permitida a tomada de créditos antes do trânsito em julgado da decisão judicial.

Fonte: https://www.abat.adv.br/wp-content/uploads/2022/08/4.-COMPENSA%C3%87%C3%83O-DE-CR%C3%89DITOS-DE-NATUREZA-TRIBUT%C3%81RIA-NO-CURSO-DO-PROCESSO-JUDICIAL.pdf